Das 88 organizações criminosas em atuação no Brasil, 46 estão nos nove estados do Nordeste, segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen) do Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP). Ano passado o Brasil somava 72 organizações criminosas e cerca de 30 estavam na região.
Para especialistas, há justificativas e elas podem ser explicadas em mais de uma frente. A maior parte das organizações corresponde a pequenos núcleos criminosos, que ainda operam de forma bastante localizada. Muitas são dissidentes de outras organizações, podem ser engolidas por rivais conforme avançam as disputas territoriais ou podem crescer, com a negligência do Estado e a parceria com facções maiores.
Uma das causas da proliferação de quadrilhas no Nordeste, avaliam especialistas, é uma ausência do Estado e uma legislação falha, que permite dominação de territórios por facções que oferecem uma falsa segurança para a população local.
Segundo o integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) Guaracy Mingardi, a maioria quase absoluta dessas organizações criminosas é de pequeno porte e possui uma atuação bastante localizada, setorizada em comunidades ou cidades ou, no máximo, regionalizada, enquanto apenas o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) têm influência nacional e internacional.
Em alguns casos essas facções menores operam em parceria, com o PCC ou o CV, enquanto outras tentam trilhar seus próprios caminhos de forma independente no tráfico de varejo, comprando entorpecente de grupos maiores, na tentativa de demarcar áreas. Muitas delas, avaliam, nasceram da dissidência de outras organizações.
Para o integrante do FBSP, o fato de estarem listadas no relatório indica que são relevantes o suficiente para serem monitoradas e, precisam ser enfrentadas pelo Estado e não negligenciadas para evitar que cresçam, se expandam e se tornem, sozinhas ou aliadas a outras, grandes conglomerados do crime.
A classificação como organizações criminosas está definida na Lei 12.850/2013, que considera uma organização criminosa qualquer associação estruturada de quatro ou mais pessoas com divisão de tarefas para cometer crimes graves. “Na maioria dos casos, quando muito, vemos pequenos grupos se organizando para esses fins ou dissidentes de outras quadrilhas. Não se tratam de grandes organizações criminosas”, reitera.
A região Nordeste concentra 27% da população brasileira somando cerca de 57 milhões de pessoas e um enorme desafio à segurança pública. Alguns desses estados aparecem entre os mais violentos do Brasil. Para especialistas, há uma soma de fatores que tem feito com que esses grupos operem na região.
Segundo o procurador-jurídico da Associação Nacional da Advocacia Criminal (Anacrim), Márcio Berti, a maioria dessas organizações tem um número limitado de membros, mas merece atenção e enfrentamento, para que não ganhe proporções e exerça o domínio do medo.
“E a escolha do Nordeste se dá em várias frentes. O Nordeste tem sido palco de expansão de facções do Sudeste, como PCC e CV, a partir de alguns parceiros dali, além do crescimento e aparecimento de grupos locais que disputam o controle do tráfico de drogas em estados como Bahia, Ceará e Pernambuco. Há uma falha na segurança pública que tem ficado explicita”, descreve Berti ao avaliar que a disputa territorial é sangrenta.
O especialista alerta para o aumento da violência urbana, com muitas capitais nordestinas entre as cidades mais violentas do Brasil. Outro reflexo está no avanço do crime organizado para cidades menores e que aparecem como as mais violentas do Brasil.
De acordo com o Anuário Brasileiro da Segurança Pública, publicado pela organização não governamental FBSP em 2024, das dez cidades mais violentas do Brasil em 2023, ano base para o levantamento, sete estavam no Nordeste: seis na Bahia - Camaçari, Jequié, Simões Filho, Feira de Santana, Juazeiro e Eunápolis -, e uma no Ceará - Maranguape.
“Isso não é uma exclusividade do Nordeste, mas a região sofre com a falta de estrutura policial em algumas áreas estratégicas, com baixo efetivo de policiamento em regiões periféricas e no interior esse contingente pode ser insuficiente para combater a expansão dos grupos criminosos. As políticas de governo falham”, reforça.
Para o sociólogo Marcelo Almeida, especialista em Segurança Pública, a região também aparece como preferida de organizações, e neste caso das maiores, porque tem uma rota facilitada para o tráfico internacional, seja pelo tráfego aéreo – com voos diretos para outros países –, ou pelas saídas para o mar a partir dos portos. Boa parte da cocaína traficada do Brasil e outros continentes sai camuflada em meio a cargas licitas em navios cargueiros.
Já o Ministério da Justiça e Segurança Pública diz que uma série de medidas vem sendo adotada para o enfrentamento às organizações criminosas pelo país e que uma das apostas é a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública. Os governadores do Nordeste apoiam a PEC, enquanto os do Sul e Sudeste se mostram resistentes pelo conteúdo do texto que tem sido proposto. Esses consideram que a PEC vai tirar a autonomia dos estados na área da segurança, dará poderes absolutos à União e ainda deve deixar essa conta para os governadores.
Estrutura carcerária no Sul e Sudeste e a criminalidade no Nordeste
Para Márcio Berti, há ainda outro aspecto que se deve considerar quando se fala em avanço do crime organizado no Nordeste: o endurecimento de regras de execuções penais com presídios e penitenciárias mais equipadas nos estados do Sul e Sudeste, e ainda parte dos líderes das facções como PCC e CV presos. Essas questões também estimulariam criminosos a buscar a interiorização de suas ações.
“Como muitas ações focaram as organizações criminosas presentes no Sul e Sudeste, com prisões de grandes líderes, isolando-os nos presídios federais, uma das alternativas encontradas pelos grupos criminosos maiores também foi expandir operação em estados e regiões nas quais esse sistema está mais precário ou ainda deficitário, como no Nordeste”, explica.
Apesar de líder na atuação de organizações criminosas, o Nordeste não está sozinho na expansão de grupos criminosos. A segunda região com maior registro de organizações criminosas é a Sul, com 24; seguida pela Sudeste, com 18.
O mapa divulgado no fim de 2024 pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública também revela um avanço das organizações criminosas no Brasil como um todo. Do mapa de 2023 para o de 2024, elas saltaram de 72 para 88.
“É um sinal muito claro que o Estado não está conseguindo enfrentar o crime organizado e ele avança sobre o Brasil e avança rapidamente, independentemente do tamanho das facções. É preciso olhar com atenção e fazer um forte enfrentamento, principalmente a partir das fronteiras, que é por onde entra parte considerável das drogas e armas que alimentam esses grupos em todo o território nacional”, alerta o investigador aposentado das forças federais de segurança Sérgio Leonardo Gomes, especialista em segurança pública.
Para Márcio Berti, o avanço e domínio das organizações criminosas no Brasil é o reflexo de um Estado socialmente fraco. “As facções ocupam os vazios deixados pela ausência de políticas públicas efetivas. Elas oferecem o que o Estado nega: “proteção, renda, pertencimento e até justiça” [...] Enquanto o poder público continuar apostando exclusivamente em operações, em vez de políticas de base, o mapa das Orcrims [organizações criminosas] continuará a mostrar o Nordeste como epicentro da crise, e o Brasil com cada vez mais [grupos criminosos]”, avalia.
Para o especialista, o avanço das organizações criminosas se pauta ainda na hipótese cultural e simbólica da criação de uma “identidade de pertencimento” e isso vale para qualquer região brasileira.
“Facções, como o Comando Vermelho e o PCC, impõem códigos de conduta, linguagem e até "valores" que oferecem aos jovens uma identidade, pertencimento e propósito, algo que o Estado não conseguiu fornecer de forma plena, especialmente nas periferias. No sistema prisional, essa lógica se acentua: ou o preso adere à facção dominante, ou se torna alvo fácil. Essa dinâmica fortalece o poder das organizações criminosas como instituições paralelas de proteção e justiça, o que é extremamente perigoso”, alerta.
Distribuição das Orcrims pelo Nordeste: Bahia tem 21 organizações criminosas
O Ministério da Justiça e Segurança Pública indica que PCC e o Comando Vermelho expandiram suas operações para o Nordeste e tomam conta do país. Além disso, facções locais emergiram em resposta a essa expansão. Entre os exemplos estaria o Ceará, onde a facção Guardiões do Estado (GDE), originária de Fortaleza, disputa território com o CV e o PCC. No Rio Grande do Norte, o Sindicato do Crime (SDC) surgiu como uma dissidência do PCC e é uma das principais facções no estado, em conflito com o PCC e o CV.
Em Pernambuco, organizações criminosas como Okaida e Estados Unidos têm atuação significativa, além da presença do PCC. Mas é no estado da Bahia onde está o maior número delas: 21, segundo o mapa das Orcrims.
Outro fator que contribui para a expansão do crime no Nordeste é a expansão geográfica das facções nacionais e de grupos como o PCC e o CV, originários do Sudeste, São Paulo e Rio de Janeiro, respectivamente. Eles estão ampliando suas operações para outras regiões com o objetivo de controlar novas rotas de tráfico e mercados consumidores. Somado a isso, está a disputa por rotas de tráfico e uma dinâmica que os maiores grupos criminosos do Brasil vêm explorando muito bem: o domínio do tráfico pelos mares e por rotas aéreas.
“Por mais que tenhamos como referência do tráfico os Portos de Santos e de Paranaguá, isso avança muito pela região Nordeste, que é estratégica para o escoamento de drogas, tanto para o mercado interno quanto para o exterior. Isso se dá pela sua localização geográfica e aos portos existentes ali. Os estados têm saída para o mar e portos importantes em operação, como o de Suapé, em Pernambuco”, reforça o especialista em Direito Marítimo Wilson Carneiro.
Para procurador-jurídico da Anacrim, Márcio Berti, pode-se considerar ainda uma condição político-institucional com alianças e coações locais. “Há no Nordeste uma presença mais pulverizada de facções, que criam alianças ou enfrentamentos regionais mais intensos do que em outras regiões", afirma. O MJSP, inclusive, menciona no documento a existência de inimigos e aliados em cada estado, o que eleva o grau de enfrentamento.
Berti explica também que, em alguns contextos locais, grupos armados acabam por substituir o próprio Estado em funções básicas, como cobrança de dívidas, resolução de conflitos e segurança comunitária, o que amplia seu domínio simbólico e real sobre o território.
Distribuição das organizações criminosas em atuação no Brasil por região
Nordeste: 46 facções, com destaque para a Bahia, que possui 21 grupos.
Sul: 24 facções, sendo 10 no Rio Grande do Sul.
Sudeste: 18 facções, com Minas Gerais registrando 11 grupos.
Norte: 14 facções.
Centro-Oeste: 10 facções.
Entre as organizações de maior abrangência nacional estão:
Primeiro Comando da Capital (PCC): atua em 24 estados e no Distrito Federal, exceto no Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.
Comando Vermelho (CV): presente nos mesmos estados que o PCC, exceto em São Paulo e Rio Grande do Sul.
O estudo classifica as facções em quatro estágios de desenvolvimento e atuação:
Iniciais: grupos em formação, com atuação limitada.
Locais: organizações atuantes apenas em seus estados de origem.
Regionais: facções com influência em estados vizinhos.
Nacionais: grupos com presença em múltiplas regiões do país.
Das 88 facções identificadas, 72 atuam localmente, 14 têm abrangência regional e 2 possuem influência nacional e internacional, o PCC e o Comando Vermelho.
Deputado do Nordeste propõe equiparar organizações criminosas ao terrorismo: “risco de narcoestado”
O deputado federal Danilo Forte (União Brasil-CE) anunciou em março que apresentará um projeto de lei para classificar a atuação de facções criminosas como terrorismo. Ele, que é representante de um estado do Nordeste - região em que 46 facções exercem influência sobre comunidades e territórios -, defende que o Brasil está "muito próximo de se tornar um narcoestado".
A proposta amplia a definição de terrorismo para incluir atos que tenham razões políticas ou que imponham domínio territorial. Além disso, ataques a infraestruturas críticas, como portos, aeroportos, redes de energia, hospitais e escolas, também passarão a ser considerados atos terroristas. No mês passado, um projeto de lei avançou no Senado para tornar o domínio de cidades e o novo cangaço como crimes hediondos.
O projeto do deputado cearense prevê punição para ações como:
- Impedimento de funcionamento de serviços essenciais, como luz, água e internet;
- Bloqueio de acesso de funcionários a comunidades dominadas pelo crime;
- Cobrança ilegal por serviços básicos, como ocorre em áreas controladas por milícias.
Segundo Danilo Forte, facções criminosas já dominam regiões inteiras, influenciam eleições, controlam o comércio e limitam a circulação da população. "Eles decidem quem entra e sai, impõem taxas e interferem diretamente na economia e na segurança pública", declarou.
O parlamentar afirmou que a inspiração para o projeto veio das medidas adotadas pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que classificou cartéis de drogas como organizações terroristas para facilitar o bloqueio de recursos em paraísos fiscais. Vale destacar que em fevereiro o senador Sergio Moro (União Brasil-PR) retomou um projeto de sua autoria que trata do mesmo tema.
Danilo Forte criticou a inércia do governo federal no combate ao crime organizado, destacando que, há quase um ano, o Executivo promete apresentar um plano para enfrentar facções, mas ainda não tomou nenhuma medida concreta. O Ministério da Justiça e Segurança Pública rebate e afirma que tem implementado ações para combater o avanço das organizações criminosas no Brasil.
Justiça diz que tem trabalhado no enfrentamento ao crime organizado
O Ministério da Justiça e Segurança Pública, por meio da Secretaria Nacional de Justiça (Senajus), dá destaque ao Programa Nacional de Enfrentamento às Organizações Criminosas (PNEOC), com o objetivo de integrar ações de prevenção e repressão ao crime organizado com a articulação entre instituições federais, estaduais e municipais, com operações integradas e capacitações para agentes de segurança pública. “Mas, por enquanto, o que vemos é o avanço das organizações”, alerta o especialista em Segurança Pública Marcelo Almeida.
Entre as estratégias de combate, o governo federal afirmou que trabalhava na elaboração de um plano estratégico para combater o domínio territorial imposto por essas organizações criminosas e milícias em todo o país, com especial atenção com alguns estados onde elas estariam mais presentes.
Para isso, havia anunciado quatro etapas do programa - indo desde o diagnóstico da força criminosa dominante na região, operações policiais para prender criminosos, ações sociais para reduzir a influência das facções e medidas de inteligência para monitorar atividades criminosas.
O ministro Ricardo Lewandowski e o governo Lula (PT) também apostam na articulação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Segurança Pública.
“Tudo o que está previsto na PEC já está previsto em lei, não precisaria de uma PEC para tirar do papel. Basta ação, recursos para a segurança e vontade política para fazer. Essa PEC enfrentará fortes pressões e, a depender de alguns estados e regiões, enfrentará muita resistência”, alerta o advogado Alex Erno Breunig, especialista em Segurança Pública.
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